Improvisação Musical

Do Ponto de Vista do Intérprete

Conteúdo sobre a improvisação do ponto de vista do intérprete.

É a expressão do intérprete num contexto de um espaço "ritualístico", verdadeira metáfora da relação indivíduo-sociedade. É a "fala" expressiva carregada da "dicção" pessoal. Não é estruturadora, composicional, não está preocupada em gerar "objetos" artísticos, obras duradouras. Como diz Berio, pode-se pensar num momento em que "a improvisação seja a manifestação de um impulso elementar libertador que é o desejo de separar, por assim dizer, a expressão da forma." É o "gesto" expressivo, é a afirmação do intérprete como um formulador de discurso. Este não é o discurso que se cristaliza na escrita. Ele tem um sentido efêmero mas afirmativo. Não se preocupa com a originalidade. Manifesta uma necessidade e uma possibilidade de participação do indivíduo intérprete (ou instrumentista/músico) numa espécie de celebração coletiva comunitária que evoca claramente outras formas de inter-relacionamento social não baseado no discurso puramente verbal com função referencial (no sentido estabelecido por R. Jakobson). Neste aspecto tem claramente um sentido libertador na medida em que é includente, provê o indivíduo de uma possibilidade de atuação no meio. Por outro lado, este tipo de improvisação só se dá, ancorada num sistema "linguístico" (5) socialmente constituído que delineia para os participantes os elementos de articulação desta linguagem: unidades paradigmáticas, sintaxe, código, conotações, denotações, etc.

Em música isto é verificável com maior ou menor precisão. Por exemplo, no blues, os participantes da "celebração" "sabem" (consciente ou intuitivamente) as formas escalares (a escala blues e suas derivações), harmônicas, melódicas e formais (o esquema cíclico de doze compassos rigidamente estruturados em torno das 3 funções tonais principais, os pontos de apoio de frase, os percursos e direções, as funções expressivas de cada trecho, os momentos "tensos" e os de resolução, e mesmo o hibridismo que há entre o sistema tonal e o modalismo herdado das raízes africanas desta manifestação). Além disso, "sabem" as nuances das inflexões melódicas, rítmicas (os sutis jogos de deslocamento de acentuação e de subdivisão), timbrísticas (de articulação e sonoridades específicas dos instrumentos e dos instrumentistas) que os habilitam a participar de maneira adequada da "conversa" coletiva (talvez seja adequado o paralelo com o jogo. Um jogo em que não há necessariamente vencedores. Ou como o jogo das contas de vidro de Hermann Hesse). Na realidade para fazer parte deste "jogo" é necessário, antes de tudo, um convívio prático com a manifestação. A consciência teórica da linguagem é condição que enriquece mas não é suficiente para a participação competente. A música em várias culturas orientais testemunha este fato. Citando o verbete "improvisation" do New Grove temos uma definição abrangente deste tipo de realidade :

"Um músico asiático passa muitos anos memorizando e absorvendo modelos tradicionais antes de improvisar e seu produto final pode conter fragmentos compostos anteriormente. A improvisação pode implicar numa liberação de impulsos naturais, sem premeditação; mas este impulso é altamente escolado e guiado por um esquema de desenvolvimento." (6)

O mesmo tipo de situação se repete em outras formas de música "popular" e folclórica. O fato destas manifestações nunca (ou quase nunca) serem escritas fazem com que elas comportem sempre, em grau maior ou menor (dependendo do tipo de manifestação e do tipo de intérprete) uma decisiva contribuição por parte do intérprete. Podemos pensar, por exemplo, na performance de uma escola de samba em que alguns percussionistas se destacam como solistas. Na verdade todos eles tem certa liberdade de expressão dentro dos limites impostos pelo "idioma".

Sob o Ponto de Vista do Público

Conteúdo sobre a improvisação sob o ponto de vista do público.

A este tipo de manifestação, originalmente, não se aplicaria o conceito contemporâneo de público, uma vez que em celebrações tribais ou comunitárias — que são as raízes deste tipo de manifestação - todos são participantes. Evidentemente que hoje em dia, no mundo ocidental "globalizado" este tipo de manifestação está devidamente incorporado como um produto de consumo no grande mercado cultural ocidental e por isto mesmo devemos pensar na situação do público que hoje "consome" este tipo de produção. O público que consome, por exemplo o jazz, apresenta geralmente um conhecimento intuitivo dos processos de improvisação ali envolvidos (ornamentação melódica, improvisação sobre uma estrutura harmônica fixa como numa chacone, etc.). A fruição parece estar num nível pouco consciente, mas há um entendimento digamos, "epidérmico", intuitivo, corporal. O fraseado sinuoso de um improvisador que "brinca" com as expectativas de acentuações e pulsos, as figuras rítmicas e melódicas reiteradas ou não, desenvolvidas como idéias, as simetrias e assimetrias, enfim todos os procedimentos que estabelecem um jogo entre com as expectativas do ouvinte e a performance propriamente dita - o inesperado equilibrado pela obediência a certas normas - trazem o ouvinte para uma postura mais ativa, interativa e atenta. O virtuosismo também exerce um importante papel e interage neste jogo. De uma maneira ou de outra pode-se afirmar que o público "iniciado" "entende" a música, compartilha (num nível de entendimento inferior) com os músicos o conhecimento da linguagem: seus códigos, seus limites e suas possibilidades de expressão. As rupturas que se deram, especificamente na história do jazz, (que por sinal trazem para esta forma de música uma "evolução" semelhante à da música erudita) são gradativamente assimiladas pelo ouvinte.

Propostas "Artificiais" de Improvisação Radical

Conteúdo sobre propostas de improvisação radical.

Estas surgiram em meados deste século e podem ser de certo modo resumidas no seguinte texto de Earle Brown: "As palavras, objetos, sons, etc., já são livres antes de qualquer um sequer pensar em usá-las. Elas não podem ser mais livres do que são, mas podem ser liberadas de sua herança cultural — e nós da nossa. A partir daí, nada nos impede de tomarmos consciência de que também somos livres como as palavras, os objetos e os sons. Tudo é, portanto, livre para mover-se em todas as direções, para todas as significações" (7) De certa forma, este tipo de pensamento coloca a improvisação como uma possibilidade de atuação do intérprete descolada de qualquer "sistema" ou "linguagem" previamente estabelecido. A improvisação aí se coloca como uma possibilidade de liberdade absoluta para o músico. Aqui pode-se incluir o pensamento de John Cage, Globokar e outros, cujas propostas se apoiam principalmente na materialidade sonora e em suas múltiplas possibilidades de transformação e relacionamento como ponto de partida para as práticas de improvisação ( e não nas linguagens, idiomas e sistemas musicais social e historicamente definidos).(8)

Síntese das Duas Formas Anteriores

Conteúdo sobre a síntese das duas formas anteriores de improvisação.

O que nos parece uma postura promissora para o momento contemporâneo é pensar na improvisação como uma possibilidade de "ativar" o intérprete, sensibilizando-o a ponto de que ele se torne um cúmplice das propostas de composição. Neste sentido, não é interessante desprezar o seu arsenal de vivências musicais (culturais, sociais e pessoais). Assim não assumiríamos uma postura como a de Globokar que busca evitar por parte dos intérpretes, o uso de "clichês" pessoais (que são "gestos" musicais, em geral inseridos e provenientes da inserção ou da vivência dos intérpretes com sistemas musicais socialmente constituídos). Consideramos estes "clichês", respostas válidas e por outro lado inevitáveis. O músico contemporâneo está submetido a uma enorme quantidade de informações que somadas à sua vivência e visão pessoal, acabam formando um rico repertório de soluções que carregam a sua marca de intérprete. Aproximamo-nos aqui de conceito de dicção, conforme formulado por Luis Tatit .

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A propósito da relação que se estabelece entre estas duas formas de encarar a improvisação no âmbito da chamada "Free Improvisation", Christian Munthe escreve: "As Derek Bailey, pionner and leading figure of European free improvised music has expressed it: ‘free improvisation is not a kind of music it is a kind of music making’....The most basic element of the musical method of the free improviser is to be found in the attitudes of the latter towards musical traditions, idioms, genres, etc. It has often been pointed out, and rightfully so, that free improvisation cannot amount to a total exclusion of traditional idioms....The difference between one who is active within the borders of some particular idiom and the free improviser is instead to be found in the way of looking at this idiom....Particular idioms are no longer viewed as prerequisites for the music-making, but rather as tools which in every moment may be used or not (....)in the same way that the starting point of free improvised music contains a refusal to commit to any particular tradition or idiom, it no more favours any experimental or innovative attitude towards music (other than in the trivial sense that nothing is prohibited and the music always is a product of the musician’s own and, in practice, always unique choices).(9)

Notas

  1. Ferraz, Silvio, Elementos para uma análise do dinamismo musical, in Cadernos de Estudo/ Análise Musical, n. 6/7, São Paulo, Atravez, 1994, p. 18.
  2. O conceito de significado aplicado à música foi desenvolvido por Willy Corrêa de Oliveira por exemplo no seguinte texto: "O índice, estabelecendo uma contigüidade de fato, abeira-se sumamente da complexidade do signo musical. Por mais inconcebível que possa parecer, estamos nos referindo ao acontecimento musical como significante! Mesmo conscientes de que a música não é senão um projeto que só se realiza em decorrência da execução. Se não se relaciona o fluxo das figuras sonoras com o significado das estruturas que as tornam inteligíveis, que as movimentam, o evento musical não ultrapassa o nível de um significante sem significado. (por outro lado, o significado, que é passível de análise através de palavras, só é musicalmente significativo - expressivo — quando uma execução lhe possibilita uma realidade a ser captada pelo ouvido)." Oliveira, Willy Corrêa de, Beethoven proprietário de um cérebro, Ed. Perspectiva, São Paulo, SP, 1979, p.50.
  3. O termo gesto é utilizado aqui com um sentido que é de certa forma emprestado de seu sentido genérico, corporal. Do Aurélio: "movimento do corpo...ou para exprimir idéias ou sentimentos..." ou mais a frente, "ação, ato". Como a maioria dos termos usados na análise do acontecimento musical, carrega aqui, certa imprecisão proveniente deste empréstimo. Pode-se pensar aqui no sentido do movimento que tem um percurso (começo, meio e fim) e que representa uma intervenção no ambiente revestida de significado. Trata-se também do seu caráter, muitas vezes espontâneo, instantâneo, intuitivo e pontual que caracteriza, neste contexto a atuação do intérprete. Assim, aqui, o uso do termo se contrapõe, na análise musical, a uma intervenção mais premeditada e estruturada própria do ato do compositor.
  4. Ver nota 5.
  5. No sentido que é estabelecido por Willy Corrêa de Oliveira: "Na música a sintaxe se revela como o mais relevante nível da linguagem". Opus cit. p. 10.
  6. Jairazbohoy, Nazir A. — Verbete "Improvisation" do dicionário musical The New Grove Dictionary of music and Musicians, London, Macmillan, 1980, p30.
  7. Brown, Earle, "Sur le Forme", in Musique en Jeu. Edition du Seuil,vol 3, 1971, Paris, pg. 31.
  8. Estes três termos são usados aqui da seguinte maneira : sistema musical é alguma forma específica de estruturação concreta da linguagem como por exemplo o sistema tonal. Os idiomas, por outro lado, se apoiam sobre algum sistema musical específico (ou às vezes mais de um como é o caso de certos idiomas da música popular que fazem conviver o tonalismo e o modalismo) e incorporam outras características que lhe dão maior especificidade como por exemplo o uso de certos ritmos característicos, formações instrumentais, etc. É o caso, por exemplo do choro que é um idioma que se utiliza do sistema tonal mas que incorpora outras características próprias de seu "estilo".
  9. Munthe, Christian, Vad är fri improvisation, in Nutida Musik, n.2, Estocolmo, 1992, pg. 12 a 15.